As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos mas choramos sempre para um outro ver.
As lágrimas são um traço tão pessoal como o olhar, ou o mover-se ou o andar.
José Tolentino de Mendonça
Arte de Maria Fett
Os olhos, habituados à luz, suavizam a tormenta, procurando o fio condutor da construção do labirinto. E, a pouco e pouco, vão bebendo a escuridão.
Quando se insinua o repouso, o horizonte, feito recompensa, parece mesmo ali, o longe tornado perto. É quando, à tardinha, se ouve o murmúrio do regato, e as aves entoam o seu mais belo canto.
Mas de longe chega o rumor da zanga das águas, rumo perdido em torrente impetuosa. Qualquer coisa que se foi, outro tanto que se teima em procurar...
A.C.
Arte de Maria Fett
Deteve-se junto à figueira despida, mas que não sentia vergonha nem frio. Agarrado a um ramo, um pequeno pássaro clamava por companhia. Admirava a coragem do pássaro. Sentiu uma enorme vontade de gritar bem alto. A solidão é uma roupa que é feita de muitos tamanhos e que serve a todos por igual.
Fernando Guerreiro
Crédito da imagem: Freepick
Mona Fitness
Nossa musa aderiu a academia, visando melhor qualidade de vida. Não pensou duas vezes: seu objetivo é alcançar um shape tipo Graciane Barbosa. Matriculou-se no Gymn próximo ao Louvre e, exalando confiança e determinação, pegou seu shake e partiu para se tornar uma senhora dinâmica! Seu condicionamento físico promove motivação e inspiração para todos nós!
Todos têm a sua vez, agora é a minha. Ou pelo menos era o que nos ensinavam no jardim-escola. Não é realmente verdade. Alguns têm mais vezes que outros, e eu nunca tive uma, nem uma. Eu mal sei dizer eu, ou meu, tenho sido ela, a ela, aquela, há tanto tempo. Nem sequer me foi dado um nome; fui sempre a irmã feia, ponham ênfase no feia. Aquela para quem as outras mães olhavam e depois desviavam o olhar abanando as cabeças suavemente. As suas vozes baixavam ou calavam-se quando eu entrava no quarto, com os meus vestidos bonitos, a minha cara inerte e carrancuda. Elas tentavam pensar em algo para dizer que redimisse a situação - bem, ela é forte - mas sabiam que era inútil. E eu também. Acham que eu não odiava a pena delas, a sua bondade forçada? E saber que, não importava o que eu fizesse, o quão virtuosa eu era, ou trabalhadora, eu nunca seria bonita. Não como ela, aquela a quem bastava estar sentada para ser adorada. E ainda se admiram porque eu espetei alfinetes nos olhos azuis das minhas bonecas e lhes puxei o cabelo até elas ficarem carecas? A vida não é justa, porque é que eu deveria ser? Quanto ao príncipe, acham que eu não o amei? Amei-o mais do que ela; amei-o mais que tudo. O suficiente para cortar o meu pé, o suficiente para matar. Claro que me disfarcei com muitos véus, para tomar o lugar dela no altar. Claro que a empurrei da janela para fora e puxei os lençóis para cima da cara e fingi ser ela. Quem não o faria, se estivesse no meu lugar? Mas todo o meu amor chegou sempre a um mau fim. Sapatos a escaldar, barris cheios de pregos. É assim que se sente, amor não correspondido. Ela também teve um filho. A mim nunca me foi permitido. Tudo o que vocês quiseram, eu também quis.
Margaret Atwood
Imagem: Retrato de Margaret Atwood, by John Reeves
Enamorei-me de um gato preto que vem quotidianamente dormitar nas sombras do meu jardim de agosto. Muitos outros vêm e a todos vou dando de comer e de beber mas, como é próprio dos gatos, nenhum consente aproximações ou se deixa ficar depois de saciado. Por mim está bem assim porque, de qualquer modo, não tenho, jamais tive, esse velho e vulgar fascínio pelos felinos, desagradam-me os trânsitos dissimulados, a postura egoica de quem dá por certos os aduladores, e o olhar fixo, que me trespassa a consciência e desafia para um jogo de propósitos ocultos. Também não vibro com os seus atos de insubordinação, tampouco me seduzem as elaborações em torno do mistério, da sensualidade e da dimensão psíquica que lhes atribuem. Entre o rol de espécies protagonistas do sobrenatural, agentes de magia e mensageiros lunares, prefiro de longe o lobo. Oposto ao gato, que tantos invejam pelo desapego, o lobo tem a nobilíssima virtude da lealdade, que aprecio sobre quaisquer outras.
Mas este gato que dormita nas sombras do meu jardim de agosto, este gato interessa-me. Tenho deixado a porta de casa entreaberta – a mais gentil de todas as armadilhas – supondo que nele, como em mim, possa haver um instante em que a curiosidade supere a desconfiança. Um dia destes. E, embora nomear seja coisa que evito porque, de alguma forma, nomear é predestinar, decidi chamá-lo de Rasputin.
Mãe Preocupada https://maepreocupada.blogspot.com/
Crédito da imagem: O pôster apresentado na imagem é "Floral Black Cat" da artista Olga Telnova.
Dizia que eu era o seu maior amor e a palavra maior parecia tão grande... Dizia todos os dias, todas as horas, a toda a gente, chegava a ser inconveniente.
E eu achei graça a um amor assim. Parecia que não quebrava prato, por sua causa até me livrei do gato, e no fim, dois anos depois, oito estações, uns apeadeiros*, deixou o meu coração em cacos, o meu coração partido no chão de azulejos da cozinha...
Depois de um "temos de falar", de me informar, depois de sair, depois de eu jantar, um prato de sopa, - consegui comer um prato de sopa, - depois de lavar na pia o prato e a colher de sopa,
depois o meu coração partido no chão de azulejos da cozinha, - eu não sabia que tinha um coração de porcelana, - eu de vassoura e pá a recolher os cacos, eu a tentar não cortar os dedos e a provar o meu sangue, eu sentada no chão de azulejos da cozinha, nos azulejos que não azulejam, a chorar lágrimas azuis.
Raquel Serejo Martins
* apeadeiros
subst masculino
1. lugar onde não há estação e em que o comboio para apenas para deixar ou receber passageiros
2. sítio de pouca demora; ponto de passagem
Etimologia: De apear+-deiro
Imagem via Pinterest
É inequívoca a diferença entre o arruaceiro e o vândalo.
O inclinado e o íngreme.
O irregular e o áspero.
O grosso e o ríspido.
O brejo e o pântano.
O quieto e o tímido.
Uma coisa é estar na ponta – outra, no vértice.
Uma coisa é estar no topo – outra, no ápice.
Uma coisa é ser fedido – outra é ser fétido.
É fácil ser valente, mas é árduo ser intrépido.
Ser artesão não é nada, perto de ser artífice.
Legal ser eleito Papa, mas bom mesmo é ser Pontífice.
(Este último parágrafo contém algo raríssimo: proparoxítonas que rimam. Porque elas se acham únicas, exóticas, esdrúxulas. As figuras mais antipáticas da gramática.)
Quer causar um impacto insólito? Elogie com proparoxítonas.
É como se o elogio tivesse mais mérito, tocasse no mais íntimo.
O sujeito pode ser bom, competente, talentoso, inventivo – mas não há nada como ser considerado ótimo, magnífico, esplêndido.
Da mesma forma, errar é humano. Épico mesmo é cometer um equívoco.
Escapar sem maiores traumas é escapar ileso – tem que ter classe pra escapar incólume.
O que você não conhece é só desconhecido. O que você não tem a mínima ideia do que seja – aí já é uma incógnita.
Ao centro qualquer um chega – poucos chegam ao âmago.
O desejo de ser uma proparoxítona é tão atávico que mesmo os vocábulos mais básicos têm o privilégio (efêmero) de pertencer a esse círculo do vernáculo – e são chamados de oxítonos e paroxítonos. Não é o cúmulo?
Eduardo Affonso,
Arquiteto, escritor e colunista do jornal "O Globo" (publicado em 2020)
Imagem gerada por IA (ChatGPT)
Serei eu, mais íntimo, mais honesto e mais ligeiro, ainda que minha maior promessa não lhe seja essa.
Eupaitio Caska
"Tudo que posso fazer é ser eu." Bob Dylan
Crédito da imagem: Fotografia de Rachel Prado